segunda-feira, 15 de março de 2010

O Repugnante Artrópode

Era noite. Estava a mesa observando o leite em pó vencer a tensão residual do café, ao mesmo tempo afundando e se dissolvendo. Como um catalizador me vali de uma colher para auxiliar o processo, sempre girando, e por fim, tonto e vencido, todo o leite submergiu. Para não restar dúvidas, nem precipitações no fundo da xícara, continuei por mais algum tempo. E veja bem, meus pensamentos andam a mil, e observar o movimento horário do café na xícara, algo tão certo e simples, tão controlado, acabei por hipnotizar a mim mesma, ao observar o pequeno redemoinho. Nada passava pela minha mente, tão simples, apenas girava, girava... Então, distraída, ainda focada na mistura marrom claro que girava a minha frente, peguei uma bolacha com a outra mão, pouco me importando se era salgada ou doce. E então o encanto se quebrou, quando senti aquele cheiro. Oh, o olfato, grande aliado da memória! E um arrepio percorreu a minha espinha, e um frio desceu pelo meu estômago até o pé da barriga, e além, um pouco mais abaixo. Ela estava ali, eu podia sentir o seu cheiro, ela estava ali. Paralisada, vasculhei o cômodo com os olhos. Não me demorei no empreendimento - precisei movimentar minha cabeça apenas 30° para vê-lo. O repugnante ser estava lá, ligeiramente a frente, parecendo perfeitamente acomodado na cortina que balançava ao vento. Apenas as suas repugnantes antenas se moviam descompassadas e desarmônicas. Ainda paralisada, solicitei a ajuda do macho alfa vigente no recinto, pedi que exterminasse o maldito artrópode. Clamei por ele, nervosa. A voz, duas oitavas acima. Minhas pernas pareciam fincadas, uma ao chão, outra a cadeira. Senti que meu pedido foi atendido, pois ouvi os passos do carrasco. Mas o maldito inseto marrom, não como o café, muito mais escuro, mogno envernizado, também percebeu sua chegada. Envergou suas antenas, e seu par de patas dianteiro, e o que eu mais temia, aconteceu: não só preparou-se para voar, como voou, certo como poeira levantada após a chuva, em minha direção. Gritei, enquanto levantava e corria. Não uma boa ideia, o pavoroso monstro estava muito perto e muito rápido, por pouco não achou repouso (ou pouso) em minha boca, e então eu teria mais um sentido para me excitar a lembrança, o paladar. Mas não foi o que ocorreu. Velozmente (ou o mais perto que poderia chegar disso, com móveis como obstáculos) me afastei da ameaça, entrando no quarto mais próximo, fechando a porta e, inútil porém instintivamente, trancando-a. Atentei meus ouvidos aos ruídos externos do meu refugio, atenta as investidas do meu salvador contra a maligna barata. Mais de uma vez ouvi a arma (sapatilha, ou sandália?) cortar o vento e atingir a mesa, o armário, duas vezes a parede, o chão. Pensei no caixeiro viajante de Kafka, pobre coitado, pobre inseto cascudo. Mas o odor desagradável ainda estava em minhas narinas, ou, pelo menos, em meu cérebro. Nada de pena. Este não era um caixeiro, era uma barata. Finalmente um dos ruídos pareceu estalar menos que os outros. O carrasco informou que o criminoso já havia pago seus pecados. Ainda torta – pois assim me porto diante de baratas, contraída, logo, torta – deixei o recinto, encontrando o algoz, divertido com a situação, a vítima presa na ponta de seus dedos por uma de suas antenas. Agradeci. Neste momento entra pela janela, como sempre o faz, e como o fez também a barata, essa noite. Sentou-se defronte a cena, eu, meu pai, o bicho morto, recentemente morto (se fosse endotérmico, seu corpo quitinoso ainda estaria quente). E então, miou. Um miado indignado. Fizeram o meu trabalho, dizia o miado. Que se pode fazer, eu respondi. O que está feito, está feito. Resolvemos dar ao cadáver um descanso digno. Que ele volte para o lugar de onde saiu (coisa que jamais deveria ter feito). E então novamente eu me vi hipnotizada, observado o inseto descer, girando, girando, ocasionalmente se batendo na louça do vaso sanitário, rumo a tubulação, e ao Rio das Tripas.
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Uma dica aos possíveis leitores: Leiam "A Metarmofose", de Kafka (Franz kafkafé! ahahaha!). É um livro interessante, incrivelmente curto e de fácil leitura. Livros curtos e de fácil leitura ou são muito ruins, ou infantis, ou muito bons, e creio que este se enquadre na última categoria. Indicado a mim pelo meu querido amigo filósofo Bruno Magnífico. Todas as coisas indicadas por ele são boas.

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2 comentários:

Fabrício de Queiroz disse...

Gostei da forma com a qual narra, sobre os detalhes e esses ´transes´, como se concentrar no café com leite.

Volto para tentar perceber mais desse elemento nos seus outros texto.



abs;
Fabrício

Suelen Nunes disse...

hahahhahahah baratas são os PIORES seres do universo! aaahrg, odeio!

Engraçado que escrevi há alguns anos um texto muito parecido com o seu em alguns pontos. Só que ficou muito curtinho, então sempre fico esperando alguma inspiração para poder "encorpar" a estória.

Gostei do texto, parabéns, =)