segunda-feira, 30 de março de 2009

Vanessa batedora de carteiras

Vanessa era batedora de carteiras. Não era molequinha de rua. Muito menos uma sexy ladra de luxo, daquelas que aparecem em filmes, avassaladoras, bem relacionadas, mestras em entrar sem sistemas e descodificar segredos de cofres. Eram uma mulher, normal, de aparência normal, condição normal. Faziam porque queria, porque era bom.

Era prazeroso sentir que tirava algo de alguém, algo que alguém ficaria sentido em perder, sem que esse alguém percebesse. Porque ela era boa no que fazia. Na maioria das vezes, quando era possível, ficava por perto, observava a vítima, até que ela notasse o ocorrido. Gostava de ver o desespero, a raiva, talvez.

Interessante é estudar as pessoas.

Melhor ainda era gastar o dinheiro. Comprar algo com ele. Era como ganhar presentes. Recebia presentes de todas as pessoas. Pelo menos de todas que ela escolhesse. Mesmo que fossem míseros 2 reais. Um cachorro quente, que fosse. Comer de graça era mais gostoso. Por diversas vezes pagaram seu lanche, sapatos, artigos pra sua cozinha.

Havia regras em seu jogo. Nunca juntava o dinheiro, para nada. Tinha que gasta-lo imediatamente. Não podia juntar com o seu, e inteirar, para comprar algo. Nem juntar os espólios de mais de um furto para o mesmo fim. Não. Pessoas diferentes, presentes diferentes. Havia regras em seu jogo. Por isso quase nunca comprava nada realmente valioso. As pessoas têm cartão de crédito hoje em dia, não saem cheias de cédulas por aí.

Através de uma carteira, descobre-se muito de uma pessoa. Muitos guardam recordações, bilhetinhos, cédulas e moedas estrangeiras, fotos 3x4, etiquetas, notas fiscais, camisinhas, flores secas, mechas de cabelo, cartões de visita, cartões de biblioteca, estacionamento, clubes, ingressos pra festas, documentos diversos. Vanessa gostava de observar tudo isso. O próprio modelo da carteira dizia algo sobre seu ex-usuário.

Perdia horas fitando seus espólios, traçando perfis, imaginando redes sociais, classificando. Um dia descobriu que roubou irmãos, filhos do mesmo pai, mas de mães diferentes, observando as identidades. O mais velho era mais bonito. Imaginava situações: a pessoa é parada pela blitz, o policial pede a CNH, ela não tem – está com Vanessa.

Uma vez roubou a carteira da Hello kitty de uma garotinha. Segundo um cartão –colocado lá pelos seus pais, provavelmente - a menina tinha intolerância a lactose, alergia a picada de diversos insetos, a diversos remédios, a animais com penas e pêlos, era diabética. Havia o telefone do médico, o cartão do plano de saúde. Era magricela e tinha olheiras. Teve pena da menina. Não havia dinheiro na carteira, mas um cartão do Playland sim. Vanessa então gastou créditos tentando pegar bichinhos de pelúcia nas máquinas. Não ganhou nenhum. Resolveu brincar nas maquininhas que cospem fichinhas. Acumulou poucas, trocou por buttons. Já era alguma coisa.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Post it (qualquer outro título seria spoiler)

Eles estavam sentados no chão do quarto. Ela estava decorando uma caixa com papel duplex preto e post it (rosa, verde limão, e laranja, cortados em quadradinhos pequenininhos). Seus dedos tinham casquinhas de cola branca. Ele estava fazendo não sei o quê, mexendo em alguma coisa. Estavam distraídos. Então ela diz não-solenemente:

- Três Anéis para os Reis-Elfos sob este céu,
Sete para os Senhores-Anões em seus rochosos corredores,
Nove para Homens Mortais, fadados ao eterno sono,
Um para o Senhor do Escuro em seu escuro trono
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam.
Um Anel para a todos governar, Um Anel para encontrá-los,
Um Anel para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam.

E tira do pescoço sua corrente mais comprida. Há um anel no lugar de um pingente. Ela entrega a ele.

- Case comigo.
Sou uma artista.

terça-feira, 10 de março de 2009

História dos óculos em minha vida ou pequena autobiografia tematizada em óculos.

Eu não era uma criança muito bonita. Ainda mais pra uma menininha. Não gostava de me arrumar, mamãe não insistia. Como até os oito anos meninas tem tanto peito quanto meninos (quer dizer, se os frangos deixarem), não havia problemas em andar sem camisa. E eu andava. Eu era um menininho, feinho, magricela e esquisito. A única coisa farta em meu corpo eram os olhinhos – ou olhões – de peixe morto. As fotos são assustadoras. Mas os olhões não ficariam tanto tempo descobertos.
Ao entrar na alfabetização (agora no educandário Engenho de Castro Alves, e não mais na cor de rosa RIMEM, uma bizarra variação de He-Man) aos quatro anos de idade, comecei a sentir dificuldades. Tinha dificuldade em fazer F’s e E’se Y’s. Fazia o F com umas cinco “perninhas”, pelo menos, e o E deitado, como um banquinho, também cheio de pernas, e os Y’s com a perna virada pro lado errado. Mas como na alfabetização ninguém usa muito Y, o problema maior era com os EF’s (confesso ter a dificuldade com o Y até hoje).  Mais ou menos assim:
Também estava tendo dificuldade em enxergar o quadro, e como sempre pertenci à turma do fundão... Óculos. Mamãe me levou à doutora Avelina (doutora avelã), e descobri que tinha miopia e astigmatismo. Que legal, vou usar óculos! E lá fui eu a ótica comprar meu primeiro óculos. Era de acetato, transparente, cheio de florzinhas rosa. Cheguei abafando na escola (eu sempre achava que tava abafando, não sei da onde tirava tanta auto-estima). Era uma combinação linda, uns cabelos ralos e curtos desgrenhados, uns olhos enormes praquele rosto magro, agora disfarçados por um óculos fundo de garrafa, “jóias” de fabricação própria (colar de rodinhas de cortina, pulseiras de retalho, ou qualquer porcaria enfiável no pescoço e no braço e ACREDITE: cinto por cima da farda, que podia ser mesmo cinto, ou uma passadeira de cabelo.) 
Tipo, eu realmente me achava o ó do borogodó, linda e cool. Mas eu não era linda e cool. Olhando as poucas fotos dessa época, vejo porque Isadora, e não eu, sempre vencia os concursos de beleza, porque eu nunca fui à rainha da primavera, do milho, da paçoca, da natureza, sendo que só tinham umas quatro meninas na sala. Pelo menos eu ganhei o livro dos arrozes sem casa (a história de arrozes e feijões que não tinham onde morar, aí a menina loira abria a boca e eles iam morar no estômago dela, puxa vida era fantástico! “Maria, Maria, não temos onde morar, abra a boca bem aberta para que possamos entrar”.) no concurso de texto e outro chato do menino que vendia limões (crianças não gostam de drama social) por nota. Pelo menos eu tive um namoradinho, chamado Léo, não era uma total desesperança. 
Continuei achando que abafava até pelo menos a 6ª série. Tive essa idéia concretizada em minha cabeça por ter ganhado em todos os anos a eleição de líder da sala (como se isso significasse que eu era linda e cool, e qual a glória em organizar um projeto?). Mas eu nunca ficava na frente dos top 10 da sala, era colocação oito, no máximo, e mesmo assim só quando os meninos somavam personalidade. Eu lembro bem disso, era personalidade 0-10, beleza 0- 10, soma e divide por dois. Não que eu ligasse pra isso. De qualquer forma, eles sempre eram apaixonados pelas meninas chatas que sentavam na frente. E elas nem falavam com eles. Bem feito!
  Fui crescendo e ficando ‘mocinha’. A partir daí o óculos começou a ser um estorvo. Eu os odiava. Odiava os malditos óculos. Odiava meus olhos graças ao irmão de minha melhor amiga, que me chamava de esquilo da era do gelo. Isso era deprimente pra uma garota na puberdade, principalmente se ela é apaixonada pelo ofensor. Mas odiava mais ainda o fato de ter que usar óculos. 
-Mãe, me deixa usar lentes!
- Não. 
Eu queria usar lentes. Era meu sonho.  Mas era complicado, lentes para astigmatismo do meu grau eram rígidas e desconfortáveis. Comecei a tirar os óculos para fotos, para cinemas com a galera, shows, forrós da escola, projetos, apresentações de teatro e apresentações. 
Passados mais alguns anos, continuei a não gostar deles, mas já estava acostumada. Também tinha perdido um pouco mais da minha esquisitice. Eu até usava o short da escola coladinho. Perdi a super-auto-estima, era a era do realismo. Também perdi a birra com os óculos. A gente se conforma, né, fazer o que. Mas continuava a tirá-los em ocasiões especiais (casamentos, formaturas, apresentações, shows, logicamente não no cinema). 
Até que chega 2009. Eu até gosto dos meus óculos. Não são tão ruins. Pelo menos meu namorado gosta deles. Mas atrapalham, em certas ocasiões. Então fui ao oftalmologista. Lentes gelatinosas já estão disponíveis para meu grau. Fiz exames. E pimba! Dentro de 15 dias receberei meu kit com seis pares de lentes para usar por um ano. 
É uma passagem de fase da vida. Eu nem mesmo me lembro da época em que não usava óculos. Não me lembro de quando enxerguei direito num evento. De quando, se tivesse ido de óculos, não tive que tira-lo momentaneamente e segura-lo para bater cabeça num show. Quando sempre que me desenhavam eu era a menina de óculos, quando se referiam assim a mim. “aquela menina, que usa óculos”. 
Agora, no more. Lente lente lente lente. Renu Renu Renu. Felicidade. Praticidade, comodidade, estética. Chuva não mais deixará pinguinhos em meu campo visual. Minha visão não ficará mais embaçada quando eu sair de um lugar com ar-condicionado para temperatura ambiente, nem quando eu abrir uma panela que expelir vapor. Meus olhos não serão mais oxigenados como antes. É um passo importante na minha vida. É realmente fantástico. É bonito. É baiano. Poderei ter milhões de óculos escuros, e usar o que eu quiser por quanto tempo quiser com a curvatura que quiser, e sem precisa pagar $500 por cada um. 
Infelizmente creio que essa felicidade deve-se mais à realização de um antigo desejo, do que de um desejo atual. Mas, WHO cares? Talvez eu não fosse a mesma pessoa que sou hoje se não tivesse passado todos esses anos de óculos. Com certeza André Matos não estaria semi-rindo na foto que tirei com ele numa tarde de autógrafos se não fosse por isso. É o começo de uma nova era. Meus olhões ficarão expostos mais uma vez.